Camadas de fake news
Eu Tenho um Problema
Esse problema se chama fake news. Não importa a fonte, a inclinação ideológica, o estilo ou o grau da mentira; eu preciso me segurar muito para não passar a tarde toda desmascarando as notícias falsas (antigamente conhecidas simplesmente como mentiras) que chegam no meu WhatsApp diariamente. Eu não ligo tanto para análises mal feitas ou mesmo tendenciosas (já que na minha opinião isso faz parte de viver em sociedade), mas quando o conteúdo parece deliberadamente montado para ludibriar o leitor eu perco o controle.
Normalmente eu ignoro a mensagem/foto/montagem e sigo com o meu dia, mas há ocasiões raras em que o nível da mentira é grande o bastante e eu estou com a agenda livre o suficiente, que corro para o computador com o único objetivo de desmentir a fake news. Geralmente em menos de meia hora já tenho uma resposta pronta com dados confiáveis, uma imagem sem Photoshop ou simplesmente um link para um site de fact-checking. Mas ontem aconteceu algo inédito: a mentira lutou contra mim.
A “Notícia”
A “notícia” falsa em questão é na verdade uma imagem. Uma imagem alterada, por sinal.
Vamos por partes. Meu espanhol não é dos melhores, mas acho que qualquer lusófono consegue compreender bem o que está sendo mostrado: o gráfico representa a posição de dois países no ranking de PIB per capita. Além disso, destacam-se o período de 1882 a 1950 (quando a Argentina nunca ficou abaixo do 10º maior PIB per capita), o período entre 1895 e 1896 (quando a Argentina estava em 1º lugar) e o ranking atual dos nossos vizinhos (59º lugar).
De acordo com o que me parece ser a imagem original, nesta versão da notícia ganhamos de brinde também uma pequena intervenção “artística” na forma de duas figuras da política Argentina: Juan Bautista Alberdi (um dos principais responsáveis pela primeira Constituição argentina) e Juan Domingo Perón (três vezes presidente da Argentina). O texto que acompanha a foto de Perón nos “informa” sobre a Constituição de 1949, quando o governo peronista reforma a Carta Magna e aparentemente dá início à “justiça social”.
O que esta imagem parece estar sugerindo é que Perón é o grande culpado pela queda da Argentina no ranking do PIB per capita. A comparação com a Austrália (que evidentemente não teve nenhum governo peronista) reforça essa ideia porque ela permaneceu aproximadamente na camada superior do gráfico. Implicitamente, o leitor parece ser encorajado a equivaler PIB per capita com desenvolvimento econômico ou qualidade de vida.
Mas, como dito anteriormente, esta imagem não é uma fake news qualquer: para desmentí-la será necessário explorar algumas camadas da narrativa sendo traçada.
Os Dados Não Mentem…
Diferentemente da maior parte das fake news, esta possui uma fonte. Os dados foram retirados do Maddison Project, um projeto acadêmico da Universidade de Groningen cujo objetivo é estimar o valor de certas estatísticas econômicas para o passado longínquo (mais sobre isso em breve).
Sendo assim, acessei o site do projeto e coletei os dados. Eles não passam de uma planilha Excel com um país por coluna e um ano por linha, com cada célula contendo o PIB per capita daquele país naquele ano em dólares constantes de 2011.
Usando o ggplot2
podemos reproduzir a imagem com facilidade:
Quando vi o gráfico, fiquei boquiaberto. Uma imagem em baixa resolução, com Photoshop mal feito, linguagem tendenciosa e veiculada via WhatsApp parecia não estar errada. Analisando o ranking da Argentina em 2016, o país de fato estava na 62ª posição e não na 59ª, mas isso está longe de desqualificar um argumento.
…Mas Podem Enganar
Mesmo estando tecnicamente certo, um gráfico não necessariamente está correto. A próxima visualização que fiz pretendia explorar não o ranking dos países, mas os seus PIBs per capita diretamente; isso é relevante porque a suposta alegação do gráfico diz respeito à economia da Argentina e não sobre ela em relação às de todos os outros países.
O que me chamou a atenção no gráfico acima foi que os PIBs per capita da Argentina e da Austrália parecem estar se descolando consistentemente desde 1905. Por que então o descolamento dos rankings só ocorre após 1950?
Contexto Importa…
Depois de mexer mais no gráfico dos valores, notei que a grande maioria dos países da tabela não tinham nenhum dado para antes de 1950. Isso me fez procurar outras fontes para dados do PIB, mas não encontrei nada que contemplasse um período tão grande quanto o do projeto Maddison. Sendo assim, fui saber mais sobre o conceito de Produto Interno Bruto.
Em primeiro lugar, descobri que a definição moderna de PIB só existe desde 1934 e que ele só começou a ser utilizado para medir a economia dos países a partir de 1944.
E agora entra em jogo o que de fato é o projeto Maddison. Já comentei que ele estima alguns índices socioeconômicos para o passado, mas não falei sobre um detalhe vital que só descobri depois: o projeto estima esses dados somente para um conjunto limitado de países! Ou seja, antes de meados da década de 1950, só temos acesso à informação de um grupo seleto de nações.
Voltando para a base, percebi que isso explicava a quantidade de países com linhas vazias antes de 1950, pois apenas 28 nações possuíam estimativas para o PIB per capita a desde 1875. É muito diferente dizer que a Argentina tinha o maior PIB per capita do mundo em 1895 e dizer que ela tinha o maior PIB per capita (estimado) entre 28 países selecionados. Abaixo é possível ver o ranking até 2016 se filtrarmos apenas os 28 países iniciais:
Fiz questão de manter a escala deste gráfico igual à do anterior porque assim fica fácil de ver o problema com a visualização da “notícia”. De fato a Argentina perdeu posições no ranking, isso é indiscutível, mas é muito diferente perder algo em torno de 10 posições em 50 anos e perder 50 posições no mesmo período.
Para entender ainda melhor o que a imagem original está escondendo, basta exibir no gráfico os dados de todos os países contemplados pela base.
Note como a quantidade de países presentes na tabela cresce significativamente depois do início da década de 1950 dado que a métrica foi colocada em vigor apenas 6 anos antes. Sendo assim, é de se esperar que a Argentina e até a Austrália percam posições no ranking. No fundo, estamos visualizando uma base para antes de 1950 (as estimativas do projeto Maddison) e uma para depois (as estatísticas reais coletadas pela comunidade internacional).
Mais interessante ainda do que tentar visualizar todos os países em um
mesmo gráfico, é possível utilizar a função dplyr::percent_rank()
que,
ao invés de atribuir números naturais como ranking, retorna o ranking
dividido pelo total de elementos na comparação.
Aqui fica claro que, mesmo depois de piorar muito no ranking do PIB per capita, a Argentina ainda não está tão ruim quanto estava no início dos anos 1880 (em relação a todos os países disponíveis para cada ano). Conclusão muito diferente da sugerida pela imagem original.
…E História Também
A última camada dessa fake news é um pouco mais sutil e não pode ser identificada olhando somente para os dados. Na verdade, só fiquei sabendo disso enquanto pesquisava mais sobre a história da Argentina na Wikipédia.
Sem querer entrar na discussão “peronistas vs. antiperonistas”, mas nossos vizinhos possuem uma herança muito forte dos três governos de Perón e a sociedade é fortemente dividida entre aqueles que apoiam seu legado e aqueles que o rejeitam (de forma similar ao nosso sentimento em relação a Vargas, mas certamente mais relevante para a política contemporânea).
A imagem é claramente montada para manchar o legado de Perón e, para isso, destaca a data na qual ele reformou a Constituição argentina. A adição das fotos e do texto posteriormente em Photoshop é o que mais faz soar meu alarme de notícia falsa.
O que aprendi sobre a história argentina, entretanto, parece colocar em cheque a ideia de que teria sido a Constituição peronista que derrubou a Argentina no ranking dos PIBs per capita: Perón foi deposto por um golpe militar em 1955 e no ano seguinte foi publicada uma nova Constituição que anulava a anterior. A Constituição de 1956 declarava “vigente la Constitución Nacional sancionada en 1853, con las reformas de 1860, 1866 y 1898, y exclusión de la de 1949”.
Agora acho importante fazer uma visualização final, destacando a vigência da Constituição que deu início à “justiça social”:
Sugiro que os autores da imagem original façam a mesma montagem com o gráfico acima.